domingo, março 27, 2011

Velhos cadernos de receitas

O que encontramos quando procuramos receitas antigas? Mofos, muitos deles: coloridos e variados. Minha nossa! As gavetas de minha mãe estão incrivelmente abarrotadas de receitas antigas, são centenas delas. Estão meio amassadas, rasgadas, sujas de poeira, esquecidas no tempo... Apesar da ação humana predatória, ainda podemos encontrá-las em vários formatos espalhadas pelas casas das mulheres da família: cadernos, livros, revistas e apostilas.


















Encontrei também um amontoado de colagens de recortes de revistas e jornais antigos; eles são tantos e tão plurais que se tornam, à um olhar perspicaz, um esboço do quebra-cabeça de uma época. Tem recortes de O cruzeiro, trechos de revista Claudia, pedaços de rótulos de leite condensado e creme de leite... Por fim, não faltaram livros e revistas publicados nos anos 60 e 70; além de apostilas dos anos 90, todas advindas dos incontáveis cursos de culinária realizados pela facção feminina dos Souza. São livros de edições luxuosas, outros bastante mal-amanhados, e ainda revistas de muito mal gosto, daquelas vendidas em bancas, super mal impressas, fora de registro.


Muita paciência foi exercitada para selecionar, recortar, sistematizar e colar as receitas mais interessantes. Esses cadernos são empreendimentos realizados durante toda uma vida; são passado de mão em mão (mão de filhas, é claro!) como se fossem jóias de família ou segredos de alcova. Poucos tem acesso... A contemplada fui eu. Mas acho mesmo que terei muito trabalho para encontrar bons resultados nessas receitas...Separar o joio do trigo será uma necessidade. Mas a brincadeira é um pouco essa! Apesar da bagunça de tanta coisa escrita, a princípio pouco instigante e muito misturada, comecei a abrir lentamente os alfarrábios, e fui encontrando várias receitas lindas no meio do grande zumbido de temperos desalinhados. De pronto, foquei meu olhar nos doces.
Que tal uma série incrível de biscoitos tradicionais da cultura européia? Mördegskakor, um biscoito amanteigado que só a Suécia poderia produzir. Sandkager, os famosos biscoitos dinamarqueses de areia, decorados e temperados com amêndoas e canela. Russinkakor, uns biscoitos de passas crocantes por fora, fofinhos por dentro. Ainda um mimoso biscoitinho natalino chamado Lebkuchen. Essa lindeza da culinária tradicional alemã tem aroma de especiaria e recebem, depois de assados, uma decoração de glacê e laço de fita tão fascinantes que dá vontade de chorar...
































Entre os doces apareceram vários daqueles facilmente encontrados nas festinha de aniversário tipicamente brasileiras, com muito leite condensado e nomes bem delicados. Beijos de amor: leite condensado, amêndoas, nozes e chocolate. O tradicional Beijinho de coco: leite condensado, coco raladinho e um toque de baunilha.
As receitas de bolo, essas se multiplicavam aos borbotões. Um Chokoladekage: bolo de chocolate dinamarquês de massa bem escura, feito com mel e cacau amargo, bastante fofinho, com cinco camadas de chocolate ao leite, uma perdição! Além dessa receita de chocolate, encontrei uma outra feita com óleo de canola. Lembro-me bem deste bolo, ele tem uma textura incrivelmente aerada, minha tia costumava fazê-lo com recheio de cerejas com ganache de chocolate branco, lembrava um bolo floresta negra.

Um pé-de-moleque com cheiro de café amargo, esse é ótimo! Com queijo coalho assado... imperdoável. Há 35 festas de São joão que experimento, ele sempre esteve maravilhoso. Mas confesso logo, devoção só tenho mesmo pelo bolo de ameixa ou pelo bolo de noiva. Deste último tenho uma receita tipicamente pernambucana que leva vinho do porto, conhaque e açúcar mascavo. Outro dia estive no Rio de janeiro e me deram uma fatia de bolo de casamento. Nossa Senhora protetora das noivas! O bolo era branco e com recheio de nozes: um sacrilégio. Fiquei alguns minutos olhando para aquela cena sem entender o que acontecia. Pensei com meus botões: que tristeza ser noiva e ganhar um bolo branco...Vamos lá, casamento não é coisa para dar certo! Mas com bolo branco, sem frutas cristalizadas, sem vinho doce, daí a probabilidade do casório desandar é maior; vocês não acham?
































Depois desse momento averiguação do antiquário açucarado, é chegada a hora de botar a mão na massa. Tenho a certeza de que a casa vai ficar com um cheiro bom danado... No próximo domingo postarei meu primeiro teste de receita, uma torta de abacaxi com ameixas, toda caramelada!

Mila Targino

domingo, março 13, 2011

Sobre menina e avó

     Não faz muito tempo que estive com minha avó pela última vez, no entanto parece que faz anos a fio. O tempo é mesmo algo muito relativo. Um dos maiores medos que tive ao perdê-la para o inexplicável da vida, foi o de esquecer o seu rosto. É muito estranho, aos poucos vamos apagando cruelmente a face de quem tanto amamos... Nesses momentos só nos sobram as fotografias e um exercício de memória afiado.

     Passamos boa parte da vida juntas, sem muito diálogo, é bem verdade. Mas tenho cá para mim que não fora por falta de assunto. Havia um entendimento silencioso, como o encontro da mão esquerda com a direita; elas sempre se entendem, sem a necessidade de acordos prévios. Juntas, fizemos de tudo um pouco: fantasia de carnaval, limpeza de casa, choramos e sorrimos com novelas, brigamos, e lógico, cozinhamos muito! Se bem que a reclamação sempre fora uma tônica, “cozinha não é lugar de criança!” Esforço vão, eu sempre retornava ao fogão.

     De meu passado mais remoto, lembro-me, perfeitamente, das manhãs na escola. Fui uma aluna do Centro de desenvolvimento da criança (CEDEC), uma escolinha simpática, no bairro da Iputinga, daquelas cheia de professorinhas... Estudava com meu amigo de infância, o André Luiz; vizinho frontal da casa de minha avó. O André era louco por bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro, e, se não me falha a memória, ele gostava muito de queijo coalho assado... Voltávamos juntos da escola, e, a bem da verdade, chegar à casa de vovó sempre fora uma alegria bem maior que estar entre os meus amigos em sala de aula. Vinha correndo, pois bem sabia que a casa estaria com gosto de almoço... O melhor de todos. Vamos lá, nossa infância tem cheiros tão específicos, que nenhum perfumista conseguiria reproduzir.

     Quando pequenina, de manhãzinha sempre comia banana frita, canela e açúcar, pão assadinho com queijo; ao meio-dia, o aroma vinha de uns bolinhos de carne fritos e deitados em um molho de tomate bem vermelhinho, para acompanhar um macarrãozinho bem simples, desses de sêmola, bem baratinho. Ver minha avó Laura - em uma gloriosa manhã sem aula - fazendo tal quitute, foi um dos grandes aprendizados de culinária da minha vida. Aquela imagem dos bolinhos dourados, repousando em uma arupema forrada com papel madeira, me impressiona até hoje. Entendi que comida boa se fazia de maneira muito simples, despretensiosamente. Lá pela tardinha tinha cocada, sequilhos de coco, ou um bolo bem tradicional em minha família: ele era fofinho e tinha abacaxi, ameixas e calda de caramelo. Comi tanto desse danado que enjoei. No iniciozinho da noite, sempre tinha canja, ou sopa de feijão; nada de requintes gastronômicos, mas, sem dúvida, a comida mais alegre que experimentei em minha infância.

     De todos os clássicos da cozinha de minha vida, o mais cultuado, sem dúvida, que foi a galinha ao molho pardo; acompanhada de batatinhas e arroz branquinho. Na época o sangue da galinha era vendido ainda quente em uma granja na Avenida Caxangá. Eles matavam a galinha e enchiam aqueles saquinhos transparentes com sangue fresco, eram inacreditáveis. Comprei muito sangue pisado como quem compra pão fresquinho. Tenho certeza que nenhuma comida jamais terá o mesmo sabor daquelas feitas pela minha avó, dizem que é o afeto que envolve o momento; elas eram plenas de carinho e a atmosfera daquela cozinha velha não se repetirá. A isso, em certa medida, já me acostumei.

     Agora vou atrás das receitas de Laura Lira, de seus cadernos antigos... Que tal colocarmos em prática suas anotações? Se funcionar - isto é, se ficar bonito, gostoso e cheiroso - publico os resultados. Vou fotografar o prato finalizado. Divido com vocês a minha alegria de rever receitas antigas, escritas com letras desenhadas, tipos caligráficos, já não mais existentes.

À Laura Lira in memorian