O que encontramos quando procuramos receitas antigas? Mofos, muitos deles: coloridos e variados. Minha nossa! As gavetas de minha mãe estão incrivelmente abarrotadas de receitas antigas, são centenas delas. Estão meio amassadas, rasgadas, sujas de poeira, esquecidas no tempo... Apesar da ação humana predatória, ainda podemos encontrá-las em vários formatos espalhadas pelas casas das mulheres da família: cadernos, livros, revistas e apostilas.
Os cadernos escritos à mão guardam lembranças de uma caligrafia perfeita, cultivada naqueles antigos cadernos do ginásio. Minha avó dizia que não era de bom-tom chegar no Clássico com uma letra feia. E eu lá sabia o que era isso, estudo clássico? Entre esses cadernos encontrei uma página na qual escrevo o nome doces, como uma espécie de índice infantil; lógico que imitando a separação temática do caderno de voinha. Mais também como um prenuncio de minha dedicação ao perfume açucarado que enche a boca de qualquer criança d`água: hidrocor colorido, capitular e corações azuis.
Encontrei também um amontoado de colagens de recortes de revistas e jornais antigos; eles são tantos e tão plurais que se tornam, à um olhar perspicaz, um esboço do quebra-cabeça de uma época. Tem recortes de O cruzeiro, trechos de revista Claudia, pedaços de rótulos de leite condensado e creme de leite... Por fim, não faltaram livros e revistas publicados nos anos 60 e 70; além de apostilas dos anos 90, todas advindas dos incontáveis cursos de culinária realizados pela facção feminina dos Souza. São livros de edições luxuosas, outros bastante mal-amanhados, e ainda revistas de muito mal gosto, daquelas vendidas em bancas, super mal impressas, fora de registro.
Muita paciência foi exercitada para selecionar, recortar, sistematizar e colar as receitas mais interessantes. Esses cadernos são empreendimentos realizados durante toda uma vida; são passado de mão em mão (mão de filhas, é claro!) como se fossem jóias de família ou segredos de alcova. Poucos tem acesso... A contemplada fui eu. Mas acho mesmo que terei muito trabalho para encontrar bons resultados nessas receitas...Separar o joio do trigo será uma necessidade. Mas a brincadeira é um pouco essa! Apesar da bagunça de tanta coisa escrita, a princípio pouco instigante e muito misturada, comecei a abrir lentamente os alfarrábios, e fui encontrando várias receitas lindas no meio do grande zumbido de temperos desalinhados. De pronto, foquei meu olhar nos doces.
Que tal uma série incrível de biscoitos tradicionais da cultura européia? Mördegskakor, um biscoito amanteigado que só a Suécia poderia produzir. Sandkager, os famosos biscoitos dinamarqueses de areia, decorados e temperados com amêndoas e canela. Russinkakor, uns biscoitos de passas crocantes por fora, fofinhos por dentro. Ainda um mimoso biscoitinho natalino chamado Lebkuchen. Essa lindeza da culinária tradicional alemã tem aroma de especiaria e recebem, depois de assados, uma decoração de glacê e laço de fita tão fascinantes que dá vontade de chorar...
Entre os doces apareceram vários daqueles facilmente encontrados nas festinha de aniversário tipicamente brasileiras, com muito leite condensado e nomes bem delicados. Beijos de amor: leite condensado, amêndoas, nozes e chocolate. O tradicional Beijinho de coco: leite condensado, coco raladinho e um toque de baunilha.
As receitas de bolo, essas se multiplicavam aos borbotões. Um Chokoladekage: bolo de chocolate dinamarquês de massa bem escura, feito com mel e cacau amargo, bastante fofinho, com cinco camadas de chocolate ao leite, uma perdição! Além dessa receita de chocolate, encontrei uma outra feita com óleo de canola. Lembro-me bem deste bolo, ele tem uma textura incrivelmente aerada, minha tia costumava fazê-lo com recheio de cerejas com ganache de chocolate branco, lembrava um bolo floresta negra.
Um pé-de-moleque com cheiro de café amargo, esse é ótimo! Com queijo coalho assado... imperdoável. Há 35 festas de São joão que experimento, ele sempre esteve maravilhoso. Mas confesso logo, devoção só tenho mesmo pelo bolo de ameixa ou pelo bolo de noiva. Deste último tenho uma receita tipicamente pernambucana que leva vinho do porto, conhaque e açúcar mascavo. Outro dia estive no Rio de janeiro e me deram uma fatia de bolo de casamento. Nossa Senhora protetora das noivas! O bolo era branco e com recheio de nozes: um sacrilégio. Fiquei alguns minutos olhando para aquela cena sem entender o que acontecia. Pensei com meus botões: que tristeza ser noiva e ganhar um bolo branco...Vamos lá, casamento não é coisa para dar certo! Mas com bolo branco, sem frutas cristalizadas, sem vinho doce, daí a probabilidade do casório desandar é maior; vocês não acham?
Depois desse momento averiguação do antiquário açucarado, é chegada a hora de botar a mão na massa. Tenho a certeza de que a casa vai ficar com um cheiro bom danado... No próximo domingo postarei meu primeiro teste de receita, uma torta de abacaxi com ameixas, toda caramelada!
Mila Targino